11 de julho de 2016

Os quatro estilos de Valpolicella

Este semestre, um dos encontros da minha confraria da ABS Campinas SBSomm teve como tema uma instrutiva degustação comparativa dos quatro estilos de vinhos de Valpolicella - desde o popular tinto básico - até as especialidades da região: Valpolicella Ripasso, Amarone della Valpolicella e Recioto della Valpolicella. Os quatro, lado a lado, com seus estilos bem distintos. Creio que nem todo mundo conhece bem tudo o que há na região. Alguns amigos até reconhecem o nome Valpolicella, mas não conhecem todos os estilos. Pra mim mesmo, foi o primeiro Recioto que provei na vida. Por isso, achei interessante registrar a degustação.


Primeiro, uma introdução à região

Valpolicella é uma região demarcada, localizada ao norte da cidade de Verona, no extremo norte da Itália, mais precisamente na região do Vêneto. Ela produz apenas uvas tintas, sendo que a principal variedade é a Corvina, a espinha-dorsal de todos os vinhos da região. Também muito importante é a Corvinone, que acreditava-se ser apenas um clone da primeira - e por isso era considerada equivalente - mas que testes de DNA identificaram ser uma variedade totalmente diferente. Outras duas variedades, Rondinella e Molinara, também figuram entre as principais, e costumam compor de 20 a 30% do vinho. Existem ainda variedades secundárias, que podem aparecer em proporções ainda menores, como a Oseleta, que quase foi extinta, mas tem tido um renascimento.

A região tem um clima predominantemente continental frio, recebendo ventos dos Alpes Italianos, além de uma contraposição de duas massas de água importantes: Mar Adriático, e do lago de Garda. O clima não favorece uma produção de vinhos muito encorpados, e as variedades de uva típicas da região, também não. A Corvina é a variedade de maior qualidade, apesar de gerar vinhos com pouca cor. Mas as outras duas, Rondinella e Molinara, ganharam espaço apenas pela produtividade, contribuindo unicamente com o volume de produção. Corvina e Rondinella têm a vantagem de possuir casca grossa, uma característica benéfica para o processo de passificação, usado para produzir o Recioto e Amarone, como veremos a seguir. Mas a terceira, agora que a região tem buscado melhorar a qualidade, tem caído em desuso.

Quando Valpolicella ganhou o status DOC em 1968, a área demarcada era muito maior do que a zona de produção original. As áreas estendidas, a sul e a leste, incluem solos muito férteis e com pouca drenagem, o que favorece o volume de produção em detrimento da qualidade. Essa expansão, somada a uma tendência de produtores em privilegiar a produtividade - principalmente nas décadas de 1970 e 1980 - deram ao Valpolicella uma má fama entre especialistas, e uma conseqüente queda de valor de mercado. A zona de produção original possui melhor reputação, e recebe o nome de Valpolicella Classico. Uma outra sub-região - chamada Valpantena - também possui reputação de produtos de melhor qualidade.

Os rótulos podem ainda conter o termo Superiore, quando tiverem maturação mínima de um ano em madeira, e teor alcoólico mínimo de 12% (não válido para Amarone, que sempre precisa de álcool mínimo de 14% e mínimo de 2 anos em carvalho, como veremos a seguir).

Um estilo, um vinho

Como uma forma de compensar aquilo que não conseguem obter da natureza, os produtores da região desenvolveram diferentes técnicas na vinificação para tentar dar mais estrutura aos vinhos. Assim, nasceram os estilos Recioto, Amarone e Ripasso. E com isso, os produtores conseguem elaborar 4 estilos de vinhos diferentes, sempre com as mesmas variedades de uvas. A seguir, apresento cada um dos estilos; e ao mesmo tempo, comento um vinho daquele estilo, que provamos nessa degustação.


O Valpolicella

Vinho tinto seco, normalmente leve e frutado, feito para ser consumido jovem. Corresponde à maioria da produção, possui grande popularidade mundo afora, mas é normalmente mal visto por especialistas e enochatos. Além de ser um vinho despretensioso, sua reputação sofreu com a superprodução. Mas como em qualquer região, há exemplares melhores e piores.

Representando a categoria, tínhamos o Valpolicella Classico Bonacosta 2013, produzido pela vinícola MASI. Composição: 70% Corvina, 25% Rondinella, e 5% Molinara. 20% da Corvina envelheceu em barricas de carvalho (francês e da Eslavônia), o restante permaneceu em grandes tonéis (botti), por 8 meses. Graduação alcoólica: 12%.

Não dava para confundi-lo com os outros. Já na cor rubi pálida, não deixa margem a dúvidas. O aroma, no nariz parecia mais doce, com bala de frutas vermelhas, além de um pouco de folhas murchas, e um leve tostado, lembrando café. Na boca, a fruta parecia mais fresca. Tem corpo levinho, taninos muito discretos, e acidez em evidência. E a persistência aromática não é das piores (6 segundos). Não é um vinho ruim, mas por R$190, me parece muito caro.


Recioto della Valpolicella

É um vinho de sobremesa. Por ser doce, foi o último a ser degustado, mas a título de didática, creio que é mais interessante apresentá-lo antes, pois ele é um precursor dos outros dois estilos. O Recioto é feito pelo método passito. Isso significa que as uvas são colhidas em cachos inteiros, e colocadas para secar em galpões aerados, por 3 meses. Elas perdem água, concentrando açúcar. Só depois, são prensadas e colocadas para fermentar. Porém, antes de todo o açúcar ser consumido, a fermentação é interrompida, resultando em um vinho doce.

O Recioto della Valpolicella Valpantena DOC 2009 é produzido pela vinícola Bertani. Composição: 80% Corvina Veronese, 20% Rondinella. As uvas secaram em estantes de bambu por 150 dias, antes da prensagem. A fermentação ocorreu em baixas temperaturas (iniciou a 5ºC, e terminou a 18ºC, quando foi interrompida). Maturou por 12 meses em tonéis de 3000 litros, feitos de cerejeira. Após engarrafado, permaneceu mais 3 meses em adega. Graduação alcoólica: 13%.

Ele tinha cor rubi de intensidade média, boa intensidade aromática, mas sem lembrar a cereja (apesar dos tonéis de cerejeira). Tinha aromas de frutas secas (figo seco, tâmara, ameixa), balsâmico e café. Na boca é doce, encorpado, com sabor intenso, acidez equilibrada, baixa adstringência, álcool bem equilibrado, e sem amargor. A persistência passa de 12 segundos. Muito bom.


Amarone della Valpolicella

O estilo Amarone surgiu como um recioto que deu errado. Ou seja, as uvas também são colocadas para secar, depois prensadas. Só que o mosto fermenta até ficar (quase) seco, e chegar a até 16% de teor alcoólico. No início, era considerado um erro, mas posteriormente o estilo foi 'redescoberto', e conquistou os adeptos de vinhos super concentrados. Mas, se a técnica do passito para vinhos de sobremesa é compartilhada por várias regiões tradicionais, o Amarone, como estilo, é único. Nenhuma outra região no mundo possui um vinho tradicional, feito por diversos produtores, em um processo similar.

Este estilo foi representado pelo Amarone della Valpolicella Classico "Colle Cristi" 2009, produzido por Michele Castellani. Composição: 70% Corvina Veronese e Corvinone, 25% Rondinella, 5% Molinara. As uvas secaram por 3-4 meses, antes da prensagem. A fermentação ocorreu em botti de 5000 litros, com uma longa maceração de 40 dias. Entre maio e junho de 2010, o vinho foi filtrado e colocado para maturar: 20% em barricas novas de carvalho francês (225L e 500L), o restante em botti de 5000 litros. Permaneceu 2 anos em madeira, antes de ser engarrafado. Graduação alcoólica: 15,5%.

O vinho tinha cor de intensidade média, de tonalidade rubi e reflexos granada. O aroma, de intensidade média, apresentava licor de cereja, tostado, bálsamo e mentolado. Na boca, era muito encorpado, com sabor intenso remetendo a ameixas, chocolate amargo e licor de cereja. Além disso, leve amargor, açúcar residual perceptível, taninos meio rugosos, e álcool sobrando um pouco, não escondiam que se tratava do Amarone (apesar da cor, pouco intensa). A persistência aromática era adequada para o estilo, mas não impressionante: 10 segundos.

Obs: Os vinhos Amarone della Valpolicella e Recioto della Valpolicella foram promovidos ao status DOCG (Denominazione di Origine Controlata e Garantita) em dezembro de 2009. No entanto, como os vinhos do painel são de 2009, eles ainda constam como DOC em seus rótulos.


Valpolicella Ripasso

A técnica do ripasso consiste em 'repassar' as cascas das uvas do Amarone em outro vinho, dando a este outro vinho mais cor, estrutura, e aromas. É considerado uma alternativa mais em conta que os Amarones, e costuma-se dizer que possuem até melhor relação custo-benefício, pois os Amarones costumam ser muito mais caros.

O Ripassa Valpolicella Superiore DOC 2009 é produzido pela vinícola Zenato. Composição: 85% Corvina, 10% Rondinella, 5% Oseleta. As uvas foram esmagadas e fermentaram com as próprias cascas, por 12 dias. Em seguida, foi separado das cascas, e permaneceu em tonéis de madeira até fevereiro. Neste momento, o vinho foi colocado em contato com as cascas do Amarone, que a essa altura, havia acabado de ser separado das cascas. Ele permaneceu 7 a 8 dias assim, quando foi prensado novamente, e colocado em barris de 500 litros, por 18 meses. Graduação alcoólica: 13,6%.

Observe que o vinho se chama Ripassa, e não Ripasso. Acontece que o estilo Ripasso só ganhou sua própria denominação DOC no final de 2009. Por isso, este vinho, apesar de ser feito pelo método Ripasso, foi classificado como um DOC Valpolicella Superiore. Apenas a partir de 2010, passou a ser "Ripassa Valpolicella Ripasso Superiore DOC".

Ele tinha cor mais intensa e jovial que o Amarone: puro rubi, intensidade média. A densidade ao girar na taça também parecia mais impressionante que o anterior. Em termos de aromas, ele demorou a se abrir, mostrando inicialmente um leve esparadrapo, e mentolado. Com o tempo, notas balsâmicas e o licor de cereja. Na boca, é completamente seco, encorpado, com acidez mais em evidencia que o anterior, taninos mais intensos, porém mais finos, sem amargor, e com sabor intenso, de licor de cereja. A persistência parecia um pouquinho mais curta que o anterior (8 segundos), e o álcool esquentava a boca (minha avaliação), mas na minha opinião e de vários outros, foi melhor do que o Amarone. E mais barato.


No resumo da degustação, o Valpolicella era o esperado: despretensioso e agradável no sabor. O Recioto - que foi o primeiro que já provei neste estilo - também foi muito gostoso, e agradou a todos. Mas o ponto alto da prova foi o Ripasso. Fiquei impressionado com ele, e vários de nós o consideraram melhor do que o Amarone - até porque este desapontou um pouco. Ele tinha um certo amargor e açúcar residual - duas falhas que não são esperadas em um grande exemplar desse estilo. Mas também não sei se era um problema de conservação daquela garrafa, ou se realmente é um exemplar inferior.

8 comentários:

  1. Para minha vergonha, infelizmente nunca provei nenhum vinho do Vêneto... Valpolicella, Bardolino, Soave, nada.
    Seu ótimo texto me anima a priorizá-los numa próxima compra.

    Saúde!

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    1. Olá Edward, obrigado pelo elogio.
      Bardolino, já tomei, e era bem simplesinho. Mas deve haver algum mais interessante. Soave, e brancos em geral da região, também estou devendo; preciso conhecê-los.

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  2. Parabéns pelo excelente texto! Um passeio pelas uvas e estilos, gerando incrível vontade ao leitor. Cheguei ao post pesquisando sobre Ripasso, pois degustei um exemplar do Mara (2017, da Cesari) neste Natal. Belíssimo!

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  3. Vc me fez viajar pelos vinhedos, um belo texto. Ñ pensei que uma simples pesquisa sobre Ripasso seria tão proveitosa. Nem todos conseguem nos cativar a leitura...obrigada por compartilhar conosco sua experiência ! Tim Tim !🍷

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    1. Não há de quê, Cladis! Fico muito feliz que tenha gostado tanto!

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  4. Luiz Alberto S Dias25 julho, 2023

    Cheguei ao seu texto pesquisando mais detalhes sobre os vinhos Valpolucella. Gostei das suas informações e impressões. São bem esclarecedoras. Obrigado

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  5. Muito bom o texto; por coincidência conversava inda ontem com o Miola e disse: estou mais numa fase dos vinhos portugueses. Ele me cortou e disse: pare com isso, pare com isso. Beba um Valpolicella e volte pros Italianos

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