Dos varietais e cortes

Existe uma infindável variedade de uvas, mesmo dentre as uvas viníferas. Portugal tem quase 300 variedades, a Itália tem mais 300, França e Espanha também têm mais de uma centena, cada. Recentemente aprendi que mesmo países que conhecemos pouco, como Bulgária, Geórgia, Suíça e Romênia têm suas variedades autóctones.

E cada variedade de uva tem suas características. Algumas têm mais acidez natural, outras são mais aromáticas, algumas têm mais açúcar (o que podem acarretar em vinhos mais alcoólicos). Entre as uvas tintas, há aquelas consideradas tintureiras, que têm muito mais matéria corante, inclusive na poupa. Mas poucas uvas, pouquíssimas, são muito boas em todos os quesitos. Rui Falcão, especialista em vinhos portugueses, falou em uma apresentação à ABS Campinas SBSomm, que considerava apenas 6 variedades de uvas como sendo completas, excelentes em todos os quesitos e, portanto, mais indicados a serem vinificados de forma varietal. Ele não citou a sua lista completa, nem conheço listas de outros críticos. Mas há uma lição a se tirar disso.

Créditos da foto: Maureen Didde via Flickr.

O corte existe por um motivo

O corte - em inglês, blend; em francês, assemblage - se refere, normalmente, à mistura de uvas diferentes. Quase sempre, à mistura de uvas de variedades diferentes (às vezes pode ser uma mistura de colheitas de anos diferentes, ou de uvas de procedências diferentes, mas não vem ao caso nessa discussão). A origem da prática do corte foi exatamente misturar vinhos com pequenos 'defeitos', com o objetivo de se obter um vinho mais 'redondo', mais equilibrado, melhor que a soma das partes.

Há 4 décadas, era raro o rótulo do vinho descrever quais eram as uvas utilizadas. Seguindo a tradição européia, cada região tinha um grupo de uvas permitidas, e os produtores não consideravam importante para o consumidor saber quais eram as uvas. A tipicidade vinha do terroir.

A prática de se divulgar as variedades ao consumidor surgiu nos Estados Unidos. Variedades que tradicionalmente eram vinificadas em corte na França, como as famosas Cabernet Sauvignon, Merlot, Sauvignon Blanc passaram a ser mais frequentemente usadas na forma varietal, isto é, utilizando apenas uma variedade de uva. E, convencidos de que a variedade da uva era a principal assinatura de um vinho (pelo menos dos deles), os produtores americanos fizeram uma campanha de promoção desta prática, de se especificar qual a uva utilizada. E isso pegou de tal forma que hoje é a regra. Poucos são os vinhos que não descrevem quais uvas foram utilizadas, à exceção das regiões mais tradicionais da França - Bordeaux, Borgonha e Champagne, principalmente.

O vinho varietal é mais fácil de se fazer. Representa uma preocupação a menos ao enólogo. E se antigamente o corte era mais importante para se produzir um vinho mais equilibrado, hoje a tecnologia auxilia muito. A correção do nível de ácidos, da cor e dos taninos, se pode fazer adicionando pozinhos. Máquinas permitem encorpar o vinho, ou micro-oxigená-lo.

Vinho varietal não é intrinsecamente melhor do que o de corte, nem vice-versa

A campanha de valorização dos varietais se disseminou na cultura pelo boca-a-boca, e ligeiramente distorcida, de forma que muitas pessoas às vezes acham que vinhos varietais são melhores, já que os cortes seriam resultado da mistura de vinhos ruins.

No entanto, a maioria dos vinhos 'reservados' (os vinhos mais baratos dos grandes produtores) são varietais. Com o objetivo de serem consumidos rapidamente, em situações do dia-a-dia, por uma grande parte da população que apenas busca um vinho agradável, eles são feitos mais equilibrados da forma mais barata. E os mesmos produtores fazem vinhos de alta gama, frequentemente resultado de corte, com colheita manual, e todo o cuidado do enólogo, destinados a serem apreciados por uma pequena parcela da população.

Porém, isso também não implica que os varietais sejam sempre piores. Também há grandes vinhos cujos produtores tomam todas as providências para que seus vinhos varietais sejam equilibrados e longevos, sem aditivos. Como exemplo maior, podemos citar os vinhos da Borgonha, que salvo raríssimas exceções, são varietais: os tintos de Pinot Noir, e os brancos de Chardonnay.

A maioria das uvas é tradicionalmente usada em corte

Eu não sei qual é a lista de Rui Falcão para as uvas que ele considera 'completas', boas em todos os quesitos, e portanto ideais para varietais. Tampouco tenho a presunção de criar uma lista definitiva. Mas vale a pena observar como a variedade é usada tradicionalmente, sobretudo em sua região de origem. Por exemplo, Pinot Noir e Chardonnay são varietais no seu terroir mais tradicional: a Borgonha. A Alvarinho e a Riesling são outras duas uvas que tradicionalmente são produzidas em varietal, nas suas regiões de origem.

Por outro lado, Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc nunca são produzidos como varietais em Bordeaux; enquanto Merlot e Sauvignon Blanc raramente o são. Existe um motivo para isso. Idem para Malbec em Cahors, e Tannat em Madiran, suas respectivas regiões de origem. E apesar da Tempranillo ser monovarietal em Ribera del Duero, um Rioja tradicional é um corte; e em Portugal, a mesma variedade, a Tinta Roriz, também é tradicionalmente usada em corte.

Isso não significa que seja impossível fazer um bom vinho monovarietal com essas variedades, mesmo que não sejam 'perfeitas'. Para começar, há muito mais tecnologia hoje em dia, para ajudar a corrigir defeitos. Além disso, muitas vezes o vinho anunciado como sendo monovarietal pode ter adição de um pequeno percentual de outras variedades. Em diversas legislações do mundo, um vinho ainda pode ser considerado varietal mesmo com adição de 15% de outra variedade - e em alguns lugares, essa adição pode chegar a 25%. E essa adição oculta pode fazer toda a diferença em corrigir as pequenas imperfeições dessas variedades.

Um comentário:

  1. Eu cresci acreditando que "corte" era sinônimo de mistura de uvas que sobraram 😊😂. Curiosamente agora na vida adulta, um dos meus vinhos favoritos é justamente uma mistura de Primitivo com Negroamaro.

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