Da harmonização

A harmonização não é uma ciência. Ela depende muito da opinião pessoal: o que funciona para uma pessoa não funciona necessariamente para outra. De qualquer maneira, nem todo vinho vai bem com qualquer comida, por isso é interessante conhecer as características do vinho, e saber como essas características funcionam para você e 'se encaixam' com as do prato, para que tanto o vinho quanto o prato continuem agradáveis, ou até melhorem. Para isso, eu tenho algumas diretrizes que considero válidas para mim. Eu comecei a formá-las a partir dos ensinamentos de experts, mas as moldei em função das minhas preferências e experiências. E as compartilho para que, quem não tiver muita idéia de como escolher um vinho, possa tentar se balizar, e formar suas próprias opiniões.

Acidez

A acidez normalmente ajuda o vinho a harmonizar com comidas. Ela ajuda a diminuir a sensação de sal e de pimenta, em comidas mais condimentadas. Também ajuda a amenizar comidas pesadas, e gordurosas. Por outro lado, se a comida possui um molho ácido, ele pode anular o vinho, por isso, o vinho precisa ter ainda mais acidez. Por exemplo, escabeche de sardinhas, que é cozido com vinagre, ou um molho de tamarindo e pimenta, com influência asiática, precisa de vinhos leves e com excelente acidez.


Álcool

O álcool, na minha opinião, nunca ajuda na harmonização. E quando sobra, pode atrapalhar. Por outro lado, comida com um toque adocicado pode ajudar a amenizar a sobra de álcool de um vinho. Comidas gordurosas também podem ajudar a diminuir a sensação de álcool. No entanto, excesso de sal e pimenta serão acentuados pelo álcool.
O excesso de álcool também incomoda em dias mais quentes. Em dias frios, pode até ajudar a aquecer.

Corpo

Vinhos com muito corpo também são pouco gastronômicos, difíceis de harmonizar, apesar de serem mais agradáveis numa noite fria. Alguns vão sugerir vinhos muito potentes para pratos pesados e de sabores muito fortes "para que o prato não atropele o vinho". Só que o conjunto será tão pesado, que eu não conseguirei tomar uma taça até o fim. O que faz um vinho acompanhar bem um prato pesado não é o seu corpo, e sim a sua acidez. Um vinho com pouca acidez poderá ser anulado pelo prato, mas um vinho leve com muito boa acidez não terá nenhum problema em acompanhar o prato. Um ossobuco ao vinho tinto, por exemplo, vai muito bem com um Pinot Noir, contanto que tenha excelente acidez.

Vejo gente chamando vinhos pesados (e às vezes alcoólicos) como sendo gastronômicos, pois são ruins quando consumidos sem comida, e melhoram com a comida (ou com certas comidas). Bem, a harmonização consiste em fazer com que um melhore a experiência do outro, e por isso concordo em dizer que é uma harmonização bem sucedida. Mas discordo que isso signifique que o vinho seja gastronômico. Um vinho pesado terá opções mais restritas, pois um vinho pesado pode, sim, anular um prato leve. Por outro lado, vinhos leves e de boa acidez - estes sim são gastronômicos - podem acompanhar tanto pratos leves quanto médios e pesados. Um ótimo exemplo são os Vinhos Verdes.


Taninos

Taninos tendem mais a atrapalhar numa harmonização do que ajudar. Se por um lado, experts dizem que um vinho com taninos intensos harmoniza com um churrasco suculento, eu, em um dia de sol, abro mão dos taninos por um vinho branco ou rosé, com boa acidez e pouco álcool, a ser servido bem frio. Se a carne vier com um molho ácido, então, como um molho de limão siciliano, um tinto se torna impensável.


Por outro lado, com certos frutos do mar os taninos podem matar o prato, e deixar um gosto desagradável de ferrugem na boca. Já li que o motivo seria a reação do tanino com o iodo. Mas e se os frutos do mar forem cozidos em um molho de vinho tinto, como por exemplo lulas ao molho de vinho tinto? Talvez seja por cozinhar o vinho, mas aquele gosto metálico não aparece.


Outro prato do mar que não costuma causar reação negativa com os taninos é o bacalhau. Apesar da ferrenha oposição de certos "experts", o bacalhau pode ser apreciado com vinho tinto, como fazem os portugueses. Algumas receitas são mais indicadas que outras. Receitas que levam tomates, azeitonas e pimentões vão muito bem com vinhos tintos.

Existe um outro prato que causa forte reação com os taninos, e é o salmão. Por causa da cor, muita gente acha que salmão é um peixe mais suscetível de se harmonizar com vinhos tintos. Para mim, isso definitivamente não funciona. A boca fica com aquele mesmo gosto de ferrugem que eu mencionei acima. Para mim, salmão só com vinho branco. Mas, como eu disse no início do texto, isso é uma questão de paladar: não funciona para mim, mas não significa que não funcione para outros.

Açúcar

Ao se pensar em açúcar no vinho, vem à cabeça a idéia dos vinhos de sobremesa. Estes, além de sobremesas, podem acompanhar bem queijos "azuis", ou mesmo queijos com geléia. Eu até prefiro uma harmonização deste tipo, por contraste (vinho doce com queijos fortes). Outra harmonização por contraste é a de certos vinhos fortificados secos, com certas sobremesas. Um Lajido de Pico, por exemplo, é um vinho fortificado seco, de caráter oxidado. É um vinho difícil, até mesmo alcoólico, mas funciona bem com sobremesas à base de creme e frutas secas. Dá um contraste interessante, acrescenta sabor à sobremesa, ajuda a tirar intensidade do doce, e perde a sensaçao de álcool do vinho.

Outra possibilidade para sobremesas são os espumantes doces ou semi-secos. Dentre os doces, os mais comuns são os Moscatéis. Eles podem se sair bem ao lado de tortas doces de frutas, ou mesmo frutas picadas com um ganache de chocolate, por exemplo.


Há ainda vinhos semi-secos que possuem uma quantidade de açúcar residual perceptível. Há muitos Vinhos Verdes, vinhos rosés, e vinhos alemães semi-secos. Eles costumam ser desdenhados por bebedores habituais de vinho. Porém, em certos pratos eles podem ser a melhor opção. Pense em um molho de goiabada com pimenta, provavelmente o molho brigaria com a maioria dos vinhos secos. Outros pratos que eu creio que se saem melhor com vinhos semi-secos são sushis e queijos de cabra de maturação média (veja aqui).


E por fim: branco, tinto, ou espumante?

Os vinhos brancos são normalmente mais fáceis de se harmonizar do que os tintos. Primeiro porque não têm taninos, segundo porque normalmente têm menos álcool e menos corpo, e em terceiro porque normalmente têm maior acidez. Também os sabores do vinho tinto, normalmente mais intensos, podem atrapalhar a comida.

Mais fácil ainda que vinhos brancos, são os espumantes (principalmente brancos). Chega-se a brincar que espumantes harmonizam com quase tudo. O motivo é exatamente a presença do gás. Além de aumentar a acidez total da bebida, o gás, na boca, limpa as papilas gustativas, e por isso eles não seriam anulados pela comida, e refrescam o paladar.

Concluindo, vinhos mais leves, mais ácidos e com menos álcool são mais gastronômicos, mas é mais importante que você goste do vinho (e da combinação). Apesar de às vezes alguns enochatos fazerem parecer que a harmonização é algo extremamente difícil, se você escolher um vinho de que goste, é mais fácil acertar do que errar.

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