17 de novembro de 2016

Estilo Amarone

Vinhos de sobremesa feitos de uvas passas são lugar-comum: algumas dezenas de locais por toda a Europa possuem tradição secular em vinhos doces desse estilo. Mas vinho seco com uvas passificadas, é bem mais incomum. A única referência mundial neste estilo é o Amarone della Valpolicella; e mesmo ele corresponde a uma tradição relativamente recente.

O Amarone teria surgido como um Recioto que deu errado. Para quem não conhece, Recioto é um passito, isto, é, um vinho doce feito de uvas passificadas (para quem quer conhecer mais a respeito dos estilos de vinho de Valpolicella, clique aqui). Diz a lenda que, eventualmente, a fermentação não era interrompida no momento correto, e o vinho fermentava até consumir todos os açúcares. Ficava seco e ligeiramente amargo, por isso o nome Amarone (amaro é amargo em italiano). Esse vinho nem era comercializado. Apenas a partir da década de 1950, alguns produtores locais começaram a investir especificamente nessas versões secas. O primeiro Amarone lançado no mercado foi o Bertani, em 1958 (na época, ainda chamado de Reciotto della Valpolicella Amarone [*][**]). Ou seja, esse estilo ainda nem chegou aos 60 anos.

Com o tempo, o sucesso dos Amarones della Valpolicella inspirou produtores, aqui e ali, a fazerem vinhos secos (ou quase secos) de uvas desidratadas. E este foi o tema do último encontro de uma de minhas confrarias. Tivemos um vinho chileno, um brasileiro, um autêntico Amarone, e ainda um outro vinho do Vêneto. Todos eles baseados na mesma premissa, porém cada um com suas particularidades de produção, que resultaram em vinhos distintos.

Os quatro vinhos 'secos' do painel, e mais um Recioto, o pai de todos

Os vinhos

O primeiro vinho do painel foi o chileno Falernia Carmenère Reserva 2011. É 100% Carmenère do Valle de Elqui, em que 60% das uvas foram colhidas tardiamente, permanecendo no pé por dois meses além do ponto de maturação. 60% do vinho estagiou em barricas de carvalho americano, por 8 meses (ficha técnica). Tinha uma cor rubi levemente turva. De cara, lembrava bem a Carmenère, com sua pirazina; mas talvez por causa da sobrematuração, não era super intensa, e estava mais para páprica do que para pimentão propriamente. Também tinha intenso tostado, frutas vermelhas, folhas e flores murchas. Era encorpado e com alta acidez, porém o álcool se destacava. Os taninos eram finos e de média intensidade, e o sabor intenso trazia bastante tostado e também as flores murchas; e a persistência era mediana. Com o passar do tempo, exalou um aroma bem marcado de Nescafé.

O segundo vinho é um vizinho de Valpolicella, chamado Picàie 2009, produzido pela vinícola Cecilia Beretta. O vinho é classificado como um Rosso Veronese IGT. Na safra de 2009, o corte foi composto de 40% Corvina (variedade principal de Valpolicella), 30% Cabernet Sauvignon e 30% Merlot. As uvas permaneceram por um mês secando após colhidas, no processo de appassimento. Em seguida, foram prensadas, e fermentaram em tanques de inox, por aproximadamente 20 dias. Ele estagiou por 6 meses em barricas de carvalho, e depois de engarrafado, foi guardado por mais um ano, antes de ser posto a venda.

O vinho tinha cor rubi de intensidade média para baixa. No nariz, era o mais frutado, com fruta vermelha fresca; mas também apresentava notas tostadas, de folhas murchas, e notas terrosas. Em certos momentos, foi possível também perceber uma páprica bem discreta (provavelmente da Cabernet). Na boca, também mostrou-se mais frutado, e de corpo um pouco mais leve (corpo médio). Alta acidez, taninos de media intensidade, e o álcool também esquentava um pouco. O final de boca era bem curto.


O terceiro foi o Amarone propriamente: o Corte Majoli Amarone della Valpolicella 2011, produzido pela Tezza wines, na sub-região de Valpantena. É um corte de 60% Corvina, 20% Corvinone, e 20% Rondinella. As uvas foram colhidas entre setembro e outubro, e colocadas para secar até dezembro, quando finalmente foram prensadas e colocadas para fermentar, num processo que levou 30 dias. O vinho estagiou em barricas de carvalho por 24 meses, e em seguida permaneceu em garrafa por mais 6 meses (ficha técnica).

Sua cor causou estranheza, pois mesmo com a pouca iluminação ambiente, era possível ver através do vinho. No aroma, pareceu o mais simples dos vinhos, limitando-se a licor de cereja e um leve tostado. A hipótese era de que talvez estivesse jovem demais. Na boca, mostrou mais corpo do que se previa pela cor (médio+), destacava a alta acidez, e os taninos mais intensos do painel, ainda que de ótima qualidade. Foi o mais equilibrado, sem nenhuma ponta de sobra de álcool. Também era perceptivelmente adocicado (posteriormente, consultei a ficha técnica, para descobrir que possui 6,9 g/L de açúcar residual). O sabor de licor de cereja (ginja) era intenso, e a persistência foi a maior do painel.

Amarone na taça

Por último, foi degustado o exemplar brasileiro, o Luiz Argenta Merlot de Uvas Desidratadas 2009. A vinícola, localizada na Serra Gaúcha, fez seu estilo-Amarone a partir de uvas Merlot, que foram colocadas para secar por 43 dias depois de colhidas. A fermentação durou 15 dias, e resultou em um vinho com 8 g/L de açúcar. Ele estagiou por 3 anos em barrica, e mais um ano em garrafa, antes de começar a vender. Pelo menos até o momento, 2009 foi o único ano em que fizeram o vinho, e produziram apenas 600 garrafas (segundo a empresa). Esta garrafa foi trazida diretamente do produtor, já que um dos confrades visitou a vinícola na semana anterior ao encontro. A garrafa é pesada, e vem em uma caixa pomposa, com um livretinho contando a história do vinho, tudo em material de qualidade.

Este foi o vinho com a cor mais intensa do painel. E tinha uma boa complexidade aromática: licor de amora, tostado, chocolate, couro, toques florais, de talco, cânfora, e uma lembrança de cera para madeira. Os aromas mais estranhos, como couro, cera e talco, se dissiparam com o tempo, e deram lugar a um bom balsâmico. Na boca, se mostrou o mais encorpado, e o álcool (16%) sobrou um pouco. A acidez era mediana, e os taninos, um pouquinho mais suaves que os outros; por isso, talvez o que tenha ajudado a domar um pouco o álcool foi o açúcar residual. Num primeiro momento, o aroma de boca trazia licor, e depois de um tempo, o balsâmico; a persistência era boa, menor do que do Amarone, porém maior que dos outros.


Conclusões

O Amarone ficou em decanter por mais de uma hora; enquanto o Luiz Argenta ficou menos de meia hora, por falta de tempo (já que o vinho chegou no local do encontro quase em cima da hora). Mas os outros dois nem foram colocados em decanter, pois já era esperado que fossem mais simples. De fato, os dois ficaram bem aquém do estilo Amarone. O Falérnia até não é mal para um Carmenère, já que o aroma típico de pimentão está bem mais sutil. Mesmo assim, foi o pior do painel, por unanimidade.

O Amarone causou um pouco de decepção inicial, pois esperava-se um vinho mais 'porrada'. E também pelo tempo aerando, esperava-se que fosse trazer um pouco mais de complexidade. Provavelmente não é dos melhores exemplares, afinal está entre os mais baratos que se pode encontrar no Brasil (R$310); mesmo assim, ele surpreendeu na boca, foi o que melhor conseguiu domar o alto teor alcoólico, e provavelmente poderia ser guardado por mais alguns anos, para atingir o auge.

O brasileiro, por sua vez, superou as expectativas. Comparado lado a lado com um autêntico Amarone, ele mostrou que possui bastante características comuns: encorpado, alcoólico, com taninos intensos e finos, aromas licorosos, boa intensidade de sabor... e levemente adocicado, o que não é incomum nos Amarones. Só que o preço também supera as expectativas, pois custou R$310 - o mesmo preço que o clássico do Vêneto. Bom, só a caixa e o livreto que acompanham a garrafa devem ter um custo de pelo menos R$30 por unidade. Enfim, não é um vinho que eu pagaria sozinho, devido ao seu preço; mas é um vinho de respeito.


A degustação ainda contou com um quinto vinho, um Recioto, o pai de todos. Mas este é assunto para um outro relato (clique aqui, para ir ao outro texto).

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