Dos vinhos de Jerez

Jerez é um micro-universo à parte, dentro do mundo dos vinhos. Por um lado, são totalmente diferentes de qualquer outro vinho que conhecemos normalmente. São tão diferentes que, mesmo que no fim sejam fruto da fermentação de uvas, é melhor pensá-los como uma categoria distinta de bebidas. Isso porque não dá para avaliá-los da mesma forma que outros vinhos.

Por outro lado, existem diversos estilos de Jerez, totalmente diferentes entre si. Podem ser totalmente secos, totalmente doces, totalmente oxidados, ou criados em um processo raríssimo, chamado crianza biológica. E podem ainda ser uma combinação desses fatores.

Foto original: Sherry.wine

Origem

A primeira coisa em comum é que todos os Jerez vêm da mesma região: uma área demarcada, ao sul da Espanha, na região da Andaluzia. É portanto, uma Denominação de Origem, chamada de Jerez - Sherry - Xérèz, reservando os nomes em espanhol, inglês e francês, respectivamente.

Essa DO está contida em um triângulo formado pelas cidades de Jerez de la Frontera, Sanlúcar de Barrameda e El Puerto de Santa Maria, bem próxima ao litoral. É uma região quente, com invernos amenos e verões muito quentes, com pouca chuva, mas com muita influência oceânica, que mantém alta umidade do ar, e traz uma sensação salina a esses vinhos. O solo da região é chamado de albariza, um solo branco, composto majoritariamente de cálcio. As chuvas se concentram na primavera, e esse solo retém muita umidade, armazenando água para as videiras ao longo do verão.

Foto original: Sherry.wine

Fortificação

Além disso, todo vinho de Jerez é fortificado. Isto significa que álcool vínico é adicionada ao vinho, em algum momento: pode ser logo no início da fermentação, ou após o final dela. Só isso já nos dá duas dimensões totalmente distintas: um fica totalmente seco, e o outro é dos vinhos mais doces que existem.

Todos os Jerez são feitos de uvas brancas. A mais emblemática é a Palomino. Ela gera um vinho quase incolor, e sem muita acidez. Ela é sempre fermentada até o final, resultando nos estilos secos (chamados de generosos).

As outras duas variedades permitidas são a Moscatel e a Pedro Ximenes; que em Jerez são passificadas para a produção de vinhos doces, com a fermentação interrompida no início do processo, retendo quase todo o açúcar das uvas. Em Jerez, esses vinhos são chamados de dulces naturales.

Criaderas y solera

Outra característica importante de Jerez é o amadurecimento do vinho. Eles normalmente amadurecem em um sistema chamado de criaderas y solera. Esse sistema consiste de fileiras de barricas empilhadas, em que cada fileira é chamada de criadera; e a última (mais próxima ao solo) é a solera.

Vinhos novos (recém-fermentados) são sempre adicionados na criadera do topo. E o vinho a ser engarrafado é sempre retirado da solera. Porém a solera nunca é esvaziada de uma vez. Retira-se apenas uma pequena parte; e na seqüência, ela é reabastecida com vinho da criadera imediatamente acima, que por sua vez é reabastecida com o vinho da criadera acima, e assim por diante.

Esse sistema faz com que vinhos de idades diferentes sejam constantemente misturados. De acordo com o conhecimento local, diz-se que o vinho velho educa o novo; e o novo rejuvenesce o velho. E como resultado, a qualidade dos vinhos é constante ao longo dos anos.

O tempo mínimo de envelhecimento é de 2 anos, sendo que há soleras produzindo vinhos com muito mais idade. Como há uma mistura constante de vinhos, a idade média é calculada pela quantidade de criaderas, e pela freqüência com que ocorre a saca (retirada de vinho para engarrafamento).

Imagem original: Sherry.wine

Existe ainda mais um fator que caracteriza os vinhos de Jerez. O amadurecimento do vinho (em espanhol, crianza) pode ocorrer de forma oxidativa, biológica, ou um mix das duas.

Crianza oxidativa

A crianza oxidativa trata-se de um amadurecimento com intenso contato com oxigênio, causando a oxidação do vinho. Não é exatamente uma exclusividade de Jerez: é o mesmo processo dos vinhos Madeira, Marsala, e Porto Tawny, para citar apenas alguns exemplos mais famosos. No caso de Jerez, são usados barris de 600L, que no entanto são preenchidos apenas com 500L de vinho, deixando um espaço de 1/6 do barril repleto de oxigênio. Isso significa uma oxidação intensa e completa, resultando em vinhos de cor âmbar, e aromas lembrando frutas secas tostadas.

A flor e a crianza biológica

A maior singularidade dos vinhos de Jerez é o processo chamado de crianza biológica. Neste caso, forma-se uma camada de leveduras sobre o vinho. Essa camada é chamada de flor, e ela não é inoculada: o bodeguero (o responsável pela produção) precisa prover as condições para que ela se desenvolva naturalmente.

Esse processo só é aplicado nos vinhos secos, totalmente fermentados. O bodeguero fortifica o vinho até 15% de álcool, e o coloca em barris, sempre deixando 1/6 do volume vazio. Esse espaço é fundamental para que se forme a flor.

Quando ela se forma, ela protege o vinho do contato com o oxigênio. Isso significa que não há oxidação, e a cor do vinho permanece um amarelo-palha bem claro, às vezes, quase incolor. Mas o mais importante, é que a flor se alimenta de álcool e glicerina, presentes no vinho, e libera substâncias aromáticas, que dão um aroma muito peculiar, lembrando massa de pão crua, fermento de pão, ou ainda maçãs vermelhas.

Foto original: Sherry.wine

Crianza biológica versus oxidativa

Observe que tanto na crianza oxidativa quanto na biológica, o barril é sempre preenchido em 5/6 da capacidade. Então o que faz com que a flor se forme em um caso, mas não em outro? Bom, em primeiro lugar, existe o imponderável. Às vezes, mesmo tendo fornecido todas as condições necessárias, a flor não se forma.

Mas uma ferramenta à mão do bodeguero lhe permite decidir se quer um estilo, ou outro. É a fortificação (em espanhol, encabezado): caso ele queira um vinho com flor, ele fortifica o vinho até 15%; mas se quiser garantir uma crianza oxidativa, ele encabeza a 17%, pois as leveduras não resistem a essa concentração de álcool.


Estilos


Todas as características descritas acima resultam em uma infinidade de estilos diferentes, que são divididos em 4 grupos:
  • Generosos: são vinhos fortificados e secos, sempre feitos de Palomino, podendo variar entre a crianza biológica e a oxidativa. O teor alcoólico pode ser 15% ou 17%;
  • Dulces naturales: são vinhos fortificados e doces, feitos de uvas Pedro Ximenes, ou Moscatel, que são passificadas, e cuja fermentação é interrompida logo no início. São sempre envelhecidos em crianza oxidativa, com teor alcoólico acima de 17%;
  • Generosos de licor: são vinhos inicialmente produzidos como generosos (portanto, secos), que posteriormente são adoçados. Isso pode ser feito adicionando um vinho dulce natural, ou adicionando mosto retificado;
  • Categorias especiais: são vinhos mais velhos, seja com indicação de idade (12 ou 15 anos), V.O.S. (mais de 20 anos), V.O.R.S. (mais de 30 anos), ou ainda Jerez de safra definida (Vintage). Eles podem ser generosos, ou dulces naturales.

Generosos

Esta categoria é a mais complexa, e também a mais importante. Todos são fortificados e secos, podendo variar em estilo de crianza. Aqueles que passam por crianza 100% biológica podem ser classificados como Finos ou Manzanillas. Os de crianza 100% oxidativa são os Olorosos. E no meio termo, existem os Amontillados, e os Palo Cortados.
  • Fino: exclusivamente crianza biológica. A flor não permite que o vinho entre em contato com o oxigênio, por isso ele mantém uma cor pálida, quase transparente. É muito seco, com acidez média-baixa, e ligeiramente alcoólico (15% de álcool). O aroma remete a leveduras, massa de pão, e maçã vermelha, bem madura. Após engarrafados, não devem ser guardados por mais de um ano, e após abertos, devem ser consumidos rapidamente, como um vinho branco.
  • Manzanilla: Finos produzidos no município de Sanlúcar de Barrameda recebem uma denominação própria. Eles tendem a ser mais elegantes, e também mais salinos, devido à maior influência marítima (a cidade está no litoral).
  • Manzanilla Pasada: uma opção existente apenas para os Manzanillas, que ocorre em vinhos originalmente Finos com longo período de crianza. Neste caso, a flor começa a diminuir, e o vinho sofre uma pequena oxidação.
  • Oloroso: 100% oxidado, com cor e aromas semelhantes aos vinhos Madeira. Isso traz uma expectativa de doçura que não é correspondida, o que assusta quem prova pela primeira vez. São muito secos, com média acidez, alcoólicos (17%), com aroma intenso (daí o nome oloroso) e muito persistente. Após abertos, podem ser guardados por alguns meses, pois já não sofrem mais tanta influência do oxigênio.
  • Amontillado: passa alguns anos com flor, e mais alguns anos sem flor, resultando em um vinho com características mistas. Se assemelha muito ao oloroso na cor âmbar, e nas características gustativas. Nos aromas, traz notas oxidadas junto a notas de leveduras. O nome vem da cidade de Montilla, onde também se produz vinhos fortificados com flor, mas as leveduras não resistem por muito tempo, resultando sempre em um vinho mesclado.
  • Palo Cortado: grosso modo, ele começa com flor, mas após 6 meses, o bodeguero decide que o vinho é 'especial'. Ele então o fortifica a 17%, matando a flor, e assim, ele passa todo o restante do tempo em oxidação. É muito parecido com o Oloroso, e algumas vezes é preciso muito boa vontade para identificar aromas da flor.

A origem do nome Palo Cortado

Para entender a origem de seu nome, é preciso se aprofundar um pouco no processo de produção tradicional dos Jerezes generosos.

Em todos eles, a produção segue idêntica a um vinho branco, até o fim da fermentação. É nesse momento que o bodeguero toma a primeira decisão. Caso ele decida que o vinho deva ser oloroso, ele o encabeza a 17%, e os barris serão marcados com um "O" (um círculo). Caso prefira que seja um fino, ele fortifica a 15%, e marca a barrica com um risco (em espanhol, um palo).

Os barris com um círculo serão destinados diretamente a uma criadera de olorosos; mas aqueles marcados com um traço ficam em um local chamado sobretabla, onde ficarão em uma espécie de limbo, até que sejam classificados novamente. O tempo de espera pode levar entre 6 meses e um ano. Nesse período, a flor se forma, ou não. Caso a flor não tenha se formado, ou com uma formação fraca, com falhas, ou pouco espessa, o vinho pode ser fortificado a 17%, e reconvertido para oloroso.

Nos demais barris, em que a flor se desenvolveu bem, o bodeguero pode decidir mantê-la; e neste caso, marca a barrica com um 'Y', extendendo palo que havia sido feito na classificação anterior. Caso contrário, ele pode decidir matar a flor, por considerar que aquele seria um vinho 'especial'. Ele fortifica a 17%, e faz um traço cortando o anterior, resultando em um traço cortado, ou em espanhol, um palo cortado.


Dulces Naturales

Os Jerez doces são produzidos a partir de Moscatel ou de Pedro Ximenes (PX), sendo a última, mais comum e mais conceituada. Em ambos os casos, as uvas são passificadas, isto é, deixadas para se desidratar, antes da prensagem e fermentação. O mosto mal é colocado para fermentar, a primeira bolha de ar se forma, e o álcool já é adicionado, interrompendo a fermentação, e conservando todo o açúcar do vinho. Para se ter uma idéia, muitos vinhos de sobremesa têm pouco mais de 100g/L de açúcar, e os PX podem passar de 400g/L. Eles estão no limiar de serem vinhos, pois o suco de uva não fermentado com álcool é chamado de mistela.

Após a fortificação, ambos passam anos envelhecendo em sistemas de criaderas y solera, da mesma forma que os generosos. Eles podem envelhecer por muitos anos, e podem ser tão bem conceituados quanto os generosos secos.

Os PX costumam apresentar cor castanha escura, e são até viscosos, de tanto açúcar. A acidez é deficiente, os aromas de caramelo e melaço são intensos. Apesar da boa reputação, acho-os extremamente enjoativos, e a única forma que consegui apreciá-los é usando-os como cobertura em sorvetes (no entanto, eles não são assim tão viscosos quanto se espera de uma cobertura de sorvetes).

Generosos de Licor

Apesar da boa reputação dos insuportavelmente doces PX, os mais equilibrados generosos de licor são injustamente desprezados. Também conhecidos como Cream Sherries, os vinhos dessa categoria são produzidos a partir de vinhos da categoria dos Generosos, que são posteriormente adoçados. Existem 3 tipos:
  • Pale Cream: é elaborado a partir de um Fino ou Manzanilla, preferencialmente adoçado com mosto concentrado retificado (basicamente açúcar e água) de uvas. Com isso, ele mantém a cor característica dos Finos. Ele é o menos doce dos três, conservando a elegância e aromas característicos do vinho base.
  • Medium: são feitos a partir de vinhos que tenham passado tanto por crianza biológica quanto oxidativa; tipicamente, os amontillados. São misturados com dulces naturales, e dependendo da proporção podem ter cor mais ou menos intensa (de âmbar a castanho), e teor de açúcar de 45 a 115 g/L.
  • Cream: feitos a partir de generosos com crianza oxidativa (principalmente olorosos) e dulces naturales. Têm cor mais escura e quantidade de açúcar maior que os mediums, com pelo menos 115g/L.

Totalmente desconsiderados na sua terra natal, eles possuem um público fiel na Inglaterra. Eu considero uma injustiça, pois costumam ser muito mais agradáveis do que o PX.

Vinhos especiais

Esta categoria agrupa vinhos com distinção de idade.
    Vinhos de indicação de idade: os vinhos podem ter indicação de 12 anos, ou 15 anos. A idade é calculada em função da quantidade de criaderas e a quantidade de vinho que se retira a cada saca, resultando em uma idade média que o vinho tem na solera.
    Vinhos de idade qualificada: são os mais antigos. Existem as categorias V.O.S. (Very Old Sherry), que corresponde a vinhos com mais de 20 anos, e V.O.R.S. (Very Old Rare Sherry), para vinhos com mais de 30 anos, sendo esta idade auditada e garantida pelo Conselho Regulador.
    Vinhos com indicação de safra: é raro, mas existe Jerez com safra única. Neste caso, ele deve ser envelhecido separadamente, em um barril lacrado pelo Conselho Regulador.

Apenas vinhos Amontillados, Olorosos, Palo Cortados ou Pedro Ximénez podem ter safra ou indicação de idade. Para Finos, não é possível.

A mistura de vinhos que ocorre no sistema de soleras é fundamental para continuar fornecendo novos nutrientes para a flor, por isso, em um barril lacrado (de safra única), ela morre. Pelo mesmo motivo, as soleras de Finos precisam ser mais baixas, para que sempre chegue nutrientes novos, até as criaderas mais baixas, caso contrário, a flor morre, e o vinho vira Amontillado. A idade mais alta possível para um Fino é de 8 anos.

Leituras adicionais

Para se aprofundar, recomendo o site promovido pelo Consejo Regulador: Sherry.wine. Além de todo o material descritivo, eles fornecem diversas apresentações, muito detalhadas a respeito de tudo que envolve os vinhos de Jerez. Clique aqui, para ir direto às apresentações.

2 comentários:

  1. Olá, um vinho de Jerez de sobremesa V.O.R.S, após aberto, como pode ser conservado?

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    Respostas
    1. Olá Rogério,
      sendo VORS, já passou por um processo totalmente oxidativo, o que significa que pode ser guardado por muito tempo, sem grandes cuidados. Sendo doce, então (imagino um PX), ele é quase imortal. Tal como um Madeira, este vinho pode ser guardado com a garrafa de pé, e sem necessidade de refrigeração. Um armário ao abrigo da luz está bom. Este tipo de vinho pode ser mantido assim por alguns anos sem perda de qualidade.
      Caso você tenha uma adega que permita deixar a garrafa de pé, e seja bastante conservador, pode deixá-lo de pé na adega, assim já estaria mais próximo da temperatura ideal de consumo, caso dê uma vontade de tomar uma dose esporádica.

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