Dos vinhos da Austrália

A Austrália - a ilha/continente - é o quinto país no ranking de produção mundial, segundo a OIV, tendo ultrapassado a Argentina em 2017. Infelizmente, muito pouco chega no Brasil, sendo a maioria exportada para Estados Unidos e Europa, sobretudo Reino Unido. Os vinhos do país têm a má fama de produção industrial de vinho barato em vinhedos irrigados que ocupam imensas planícies - o que não deixa de ser uma realidade - mas a Austrália tem muito mais a oferecer.

História

As vinhas chegaram à Austrália com os primeiros colonos, em 1788, em Sydney. Os primeiros plantios falharam devido ao clima quente; mas os colonos buscaram alternativas, sobretudo em Hunter Valley, com sucesso. Em 1820, a produção vinícola já estava estabelecida [*]. O cultivo vinícola rapidamente se espalhou principalmente pelos estados de Novas Gales do Sul, Austrália do Sul e Vitória.

A maioria do país, de clima mais quente, produzia principalmente vinhos fortificados, secos ou doces, normalmente de estilo oxidado. A produção de vinho de mesa se concentrou no sul de Vitória, região de clima temperado, que por volta de 1890, produzia mais da metade do vinho do país. Foi nessa época que a filoxera chegou a Vitória, e destruiu os vinhedos do estado. O governo australiano rapidamente impôs um sistema de quarentena entre os estados, o que garantiu que a infestação não afetasse os vinhedos da Austrália do Sul. Por essa razão, este estado possui hoje muitos do vinhedos mais antigos do mundo (o rígido controle sanitário é mantido até os dias de hoje). Já a Austrália Ocidental, devido ao seu isolamento geográfico, também não foi afetada pela filoxera.

A filoxera acabou com a atividade vinícola de Vitória, que só foi retomada a partir da década de 1960. Com isso, o polo da produção vinícola do país se deslocou para a Austrália do Sul. Além disso, a produção australiana se resumiu aos vinhos fortificados, que passaram a representar 86% da produção nacional [*]. A cultura de consumo do vinho no país desenvolveu até mesmo uma conotação pejorativa com relação a vinhos de mesa.

A partir da década de 1950, a Austrália recebeu uma massiva imigração européia, em especial de italianos, que disparou uma mudança de cultura. Em paralelo, em 1955, um grupo de produtores fundou o Australian Wine Research Institute (AWRI), instituto de pesquisa dedicado à vitivinicultura, que desde então definiu diversos avanços tecnológicos que beneficiaram a industria australiana e, posteriormente, a indústria vinícola mundial. Com a ajuda da AWRI, e um novo mercado interno se desenvolvendo, a produção de vinhos de mesa cresceu exponencialmente; em 1994, já representava 94% da produção, e o país já figurava em 6º maior exportador de vinhos do mundo. A Austrália se estabeleceu como origem de tintos potentes, produzidos em zonas de clima quente. Mas ao mesmo tempo, mais e mais produtores voltaram as atenções para regiões mais frias, como Margaret River, Tasmânia e Vitória, que viu o renascimento da sua atividade vinícola.

A entrada no Século XXI trouxe à Austrália o dilema dos screw caps. O alto custo e muitos problemas de contaminação de rolhas levaram a indústria australiana a testar as tampas metálicas como uma alternativa à cortiça, com a ajuda de pesquisas promovidas em parceria com a AWRI. Hoje, 99% das garrafas vendidas na Austrália são fechadas com screw caps; mas muitos produtores ainda utilizam a rolha de cortiça para exportação, já que a screw cap ainda encontra resistência em muitos mercados [*].

Regiões vinícolas da Austrália (fonte: Wine Australia)

Aspectos gerais

De norte-sul, o país se estende desde o paralelo 10ºS até 43ºS, o que resulta em uma grande diferença de climas. O norte e noroeste possuem clima tropical de monções, muito quente e com um abundante índice de chuvas, inadequado para vinhedos. O centro do país, conhecido como Red Centre, é árido e desértico. No leste, a Cordilheira Australiana corre de norte a sul, em paralelo à costa, bloqueando boa parte da influência do Oceano Pacífico, e propicia climas de altitude, com dias quentes e noites frias, propícios a viticultura de qualidade. Já no sul, é a influência do Oceano Austral, com temperaturas amenas e índice de chuvas adequado, que favorece a viticultura de qualidade.

Na prática, quase toda a produção está abaixo de 30ºS, ou seja, no terço sul do país. Na maior parte, o clima é predominantemente tropical, quente e seco. Os melhores vinhedos estão em zonas de altitude, ou no litoral sul. Alternativamente, regiões continentais com abundância de rios (Big Rivers) permite a produção de vinhos de baixo custo por meio de irrigação, a grande maioria exportada para Inglaterra ou Estados Unidos.

Na faixa tropical, predomina a Syrah, que os australianos rebatizaram de Shiraz, e que costuma gerar vinhos poderosos, alcoólicos e frutados. Ela frequentemente aparece em monovarietal, e às vezes nos cortes GSM (Grenache, Syrah, Mourvèdre), típicos do sul do Rhône. Também se dá bem a Cabernet Sauvignon, normalmente num estilo "Novo Mundo", seja em monovarietal, em corte com a Merlot, ou um corte Syrah/Cabernet, uma criação australiana. Entre as brancas, a Chardonnay se adaptou tanto ao clima tropical, quanto ao temperado, e é a mais cultivada no país. Sauvignon Blanc, Semillion e Riesling possuem focos de relevância em regiões de clima mais fresco.

O clima só se torna temperado a partir do paralelo 37ºS, o que corresponde à costa sul do estado de Vitória, e a ilha da Tasmânia. Nessas zonas, predominam variedades de clima frio, como Pinot Noir e Chardonnay. Elas são usadas para vinhos tranquilos, e também para espumantes, sobretudo na Tasmânia. A Syrah também ocupa boa área de vinhedos, e costuma gerar vinhos mais elegantes e especiados.

As GIs a nível de estado e zona (fonte: Wine Australia)

Geographical Indications

A Austrália é composta de 8 unidades administrativas, sendo 6 estados - Austrália do Sul (South Australia), Vitória (Victoria), Nova Gales do Sul (New South Wales), Queensland, Austrália Ocidental (Western Australia) e Tasmânia - e dois territórios - Território do Norte (Northern Territory) e Território da Capital Australiana (Australia Capital Territory - ACT). Essa distinção tem reflexos políticos, mas nenhuma importância do ponto de vista vinícola.

O sistema de classificação de vinhos do país se chama Geographical Indications (GI), que como o nome sugere somente especifica a origem do vinho, mas não regula outros aspectos de produção (como estilos, variedades de uva, formas de cultivo ou de vinificação). As GIs são categorizadas nos seguintes níveis: extra-estadual, estado, zona, região, sub-região.

  • GI Australia: corresponde a todo o país. Não tem nenhuma coesão, e só existe para dar um senso de origem a blends de vinhos provenientes de diferentes estados.
  • GI South Eastern Australia: Essa GI engloba os estados da Tasmânia, Vitória, Nova Gales do Sul, o sul de Queensland, e o leste da Austrália do Sul. Na prática, engloba praticamente toda a produção vinícola do país, à exceção da Austrália Ocidental.
  • Estados: Cada estado e território possui uma GI que engloba toda a sua área, até mesmo a ACT. Os territórios do norte e da capital, e a ilha da Tasmânia contam somente com a GI estatal.
  • Zonas: Os estados de Vitória, Nova Gales do Sul, Austrália do Sul e Austrália Ocidental são divididos em zonas, em que cada uma corresponde a uma GI.
  • Regiões: regiões são unidades territoriais mais específicas que zonas. As GIs mais conhecidas, como Barossa Valley, Hunter Valley, Clare Valley e Margaret River, correspondem ao nível de região.
  • Sub-regiões: eventualmente, algumas regiões possuem sub-regiões reconhecidas com GIs específicas.
As sessões seguintes descrevem as características gerais e principais regiões de cada estado.

South Australia

O estado da Austrália do Sul ocupa praticamente toda a costa da Great Australian Bight (a grande 'angra' que abrange boa parte da costa sul do país), e se estende até o Red Centre, a norte. A produção se limita ao sudeste do estado, próximo à cidade de Adelaide, e no extremo sul (Limestone Coast). Mesmo assim, é a região vinícola mais importante, em volume e em qualidade. É responsável pela metade da produção, e muitos dos principais vinhos do país.

Barossa Valley é a GI mais famosa, e concentra os vinhedos e vinícolas mais antigos do pais. É uma região plana e baixa, e de clima predominantemente continental. Produz Shiraz concentrados e frutados, seguido dos cortes GSM e da Cabernet Sauvignon. McLaren Vale, de frente para o golfo, tem um clima mais marítimo, mas também tem sua reputação baseada em Shiraz, Cabernet e cortes GSM.

Coonawarra é a região mais importante da Limestone Coast. É caracterizada por um solo rico em ferro, chamado localmente de terra rossa, e por um clima moderado pelo Oceano Austral. Produz principalmente Cabernet Sauvignon de estilo concentrado, com Shiraz e corte Cabernet/Shiraz em segundo e terceiro lugares.

Próximo a Adelaide, a cadeia de montanhas Mount Lofty Ranges, provê terroirs de altitude, cujo clima mais ameno propicia o protagonismo das uvas brancas. Clare Valley é famosa por Rieslings com aromas de frutas maduras, petrolato, e boa capacidade de guarda. Eden Valley também vem ganhando destaque com a Riesling; o clima mais fresco gera vinhos com aromas a frutas brancas. Já a GI Adelaide Hills, muito mais extensa, tem portfólio mais diversificado, com Sauvignon Blanc, Chardonnay, Sémillon e, em menor medida, Riesling.

GIs regionais da Austrália do Sul (fonte: Wine Australia)

Western Australia

É a maior das regiões administrativas da Austrália, dominando o terço oeste da "ilha continente". A produção vinícola se concentra no extremo sudoeste, próximo à costa, onde a influência dos Oceanos Índico e Austral propiciam um clima marítimo, fresco e úmido, similar ao de Bordeaux. O estado produz apenas 5% do volume de produção do país, mas com grande percentual de vinhos muito bem conceituados.

Chardonnay e Shiraz são as variedades mais cultivadas no estado. No entanto, o destaque da região é a GI Margaret River, que se destaca pelos cortes bordaleses tanto tintos (Cabernet Sauvignon / Merlot) quanto brancos (Sauvignon Blanc / Sémillon), em um estilo que prima pela elegância e complexidade, mais similares ao estilo europeu que à potência dos vinhos da Austrália do Sul.

GIs regionais da Austrália Ocidental (fonte: Wine Australia)

Northern Territory

Devido à sua pouca ocupação, O Território do Norte não é considerado um estado. Como o nome indica, ocupa o norte do país. O clima é quente, com o litoral excessivamente úmido, e o centro ocupado pelo deserto, excessivamente seco. Ambos inadequados à produção de uvas viníferas. O volume de produção é baixo, composto principalmente de vinhos fortificados, a base de Cabernet Sauvignon e Shiraz. A única GI é a que corresponde a todo o território.

Queensland

É a segunda maior unidade administrativa, cobrindo o nordeste do país. O interior é muito quente e seco, enquanto a maior parte do litoral tem um clima tropical, com muita chuva. A exceção está no sudeste da região, sobre a Cordilheira Australiana, que apresenta um clima de altitude, temperado, possibilitando a produção vinícola de qualidade. As principais uvas são Shiraz, Cabernet sauvignon e Grenache entre as tintas, e Chardonnay e Sémillon entre as brancas. Queensland possui a GI estatal, e 2 GIs regionais, mas não possui zonas.

New South Wales

É o estado mais populoso da Austrália. O leste é dominado pela Cordilheira, e salpicada de diversas GIs, a maior parte sobre ela. Shiraz, Chardonnay, Cabernet Sauvignon e Sémillon são as protagonistas. O interior do estado, dominado pelos Big Rivers, é plano e quente, e cultivado com imensas extensões de vinhedos para vinhos de baixo custo, em escala industrial, graças à irrigação.

O destaque de Nova Gales do Sul é Hunter Valley. Foi aqui que a Chardonnay foi plantada pela primeira vez, na Austrália. Chardonnay e Shiraz possuem grande importância, mas os vinhos mais icônicos são os brancos de Sémillon, de baixo teor alcoólico, sem madeira, mas com grande capacidade de guarda, e que adquirem grande complexidade com o passar do tempo.

GIs regionais de Nova Gales do Sul (fonte: Wine Australia)

Australian Capital Territory (ACT)

É o equivalente ao nosso Distrito Federal. Corresponde ao território da capital do país, que no caso se chama Camberra. O ACT é um enclave no estado de Nova Gales do Sul. Além da GI ACT, também faz parte da GI Camberra District. Normalmente são pequenas vinícolas-boutique de burocratas.

Victoria

O estado de Vitória ocupa a ponta sudeste da Austrália, e possui climas muito diversificados. O litoral é refrescado pelas correntes do Estreito de Bass, enquanto o leste é dominado pela Cordilheira, que fornece microclimas de altitude. Já o norte possui clima continental quente, similar ao estado vizinho de Nova Gales do Sul.

Melbourne, a capital do estado, se localiza sobre a Baía de Port Phillip, ao sul. A Baía é rodeada pelos principais vinhedos, com destaque para as GIs Mornington Peninsula e Yarra Valley. O clima fresco propiciado pelo Estreito e pela Baía tornam a zona de Port Phillip adequada a Pinot Noir e Chardonnay, vinhos pelos quais essas duas GIs são mais famosas. Yarra Valley também produz Shiraz, em um estilo típico de clima frio.

À medida em que se afasta da costa, a Pinot Noir cede lugar à Shiraz. Na zona de North East Victoria, a GI Rutherglen é famosa pela produção de vinhos fortificados envelhecidos em sistemas de solera, a partir das variedades Moscatel ou Muscadelle. Já no North West Victoria, os vinhedos ocupam imensas planícies, e se fundem com os da Nova Gales do Sul para produção em volume industrial.

GIs regionais de Vitória (fonte: Wine Australia)

Tasmânia

A ilha da Tasmânia é o estado mais meridional da Austrália. O clima é significativamente mais frio que o restante do país, sendo propício para variedades de clima frio, como Pinot Noir, Chardonnay, Riesling, Sauvignon Blanc. Pinot Noir e Chardonnay têm o destaque devido também à produção de espumantes. A ilha possui uma topografia montanhosa, com até 1620 metros de altitude. Ventos marítimos trazem grande volume de chuvas à metade oeste da ilha, e por isso a vinicultura se concentra em encostas montanhosas do norte e leste. A GI Tasmania é a única que se aplica à ilha, já que não há zonas ou regiões reconhecidas oficialmente.

Referências


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