23 de maio de 2021

Formas de interação entre vinho e comida

A harmonização depende das características organolépticas da comida e do vinho:

  • intensidade de sabor;
  • texturas;
  • componentes do vinho (acidez, açúcar, adstringência, álcool, amargor) versus sabores da comida (ácido, doce, salgado, amargo);
  • aromas.

Ela depende de como esses elementos interagem, quando combinados. O efeito, se positivo ou negativo, depende do gosto pessoal; mas os efeitos descritos abaixo tendem a se aplicar à maioria das pessoas.

Intensidade de sabor

Um dos cenários indesejados é que o vinho anule a comida, ou vice versa. Para isso, é importante que ambos tenham uma intensidade de sabor equivalente. Por exemplo, ao lado de um Chardonnay barricado, um peixinho grelhado perderia todo o sabor, ficaria insosso; assim como um vinho branco levinho ficaria parecendo água ao lado de um ossobuco substancioso, servido no próprio molho.

Em geral, para se ter uma intensidade de sabor equivalente, opta-se por vinho e comida de pesos equivalentes: um prato leve, com um vinho leve, e um prato pesado, com um vinho encorpado. É uma boa diretriz, mas, claro, há exceções. Alguns pratos muito pesados podem ter características que entrem em conflito com vinhos pesados. Em contrapartida, alguns vinhos mais leves podem ter alta intensidade de sabor (por exemplo, vinhos brancos aromáticos), sendo aptos a pratos encorpados (como um curry).

Texturas

A textura do vinho se refere a sensações táteis que ele apresenta na boca.

  • untuosidade: é devida a componentes sólidos dissolvidos no vinho (principalmente, açúcar), e potencializada pelo teor alcoólico. Por similaridade, vinhos untuosos (por exemplo, fortificados) tendem a harmonizar com alimentos untuosos, como cremes, consomés, queijos de massa mole.
  • "crocância": a alta acidez (principalmente do ácido málico), assim como a presença de bolhas (agulha de vinhos tranquilos, ou perlage de espumantes) trazem um frescor muitas vezes descrito como crocância (do inglês crispy). Por similaridade, vinhos com essa crocância podem harmonizar com saladas, peixes ou frutos do mar grelhados ou fritos. Por contraste, esses vinhos podem harmonizar com alimentos gordurosos, pois ajudam a limpar a gordura da boca.
  • adstringência: a sensação de secura na boca causada pelos taninos pode ser descrita como sedosa, aveludada (no caso de taninos de boa qualidade), ou rugosa (má qualidade). Em ambos os casos, a melhor harmonização é por contraste, com alimentos ricos em proteínas e gorduras, que irão se combinar aos taninos, neutralizando-os. Essas condições são encontradas em carnes vermelhas em preparos quentes.

Componentes do vinho

Do ponto de vista do vinho, seus componentes interagem com os alimentos da seguinte forma:

  • Acidez: normalmente, ela contribui para que o vinho seja mais gastronômico. Ela suaviza a sensação de sal, de pimenta, e de gordura (contraste).
  • álcool: em geral, tem efeito negativo, contrastando com a pimenta, potencializando-se mutuamente. Por outro lado, o álcool do vinho pode ser suavizado pelo doce e pela gordura do alimento. Por isso, alguns vinhos alcoólicos dão a impressão de "pedir comida".
  • adstringência: os taninos entram em conflito com frutos do mar (criando um sabor metálico), e também com alimentos excessivamente untuosos (como queijos, gorduras frias, ovo). Por outro lado, têm contraste positivo com carnes vermelhas suculentas;
  • amargor: o amargor normalmente não está presente no vinho, mas alimentos ácidos e amargos podem fazer ressaltar/aparecer amargor no vinho. Por outro lado, vinhos amargos podem harmonizar por similaridade, com alimentos amargos (como, por exemplo, Jerez e alcachofra);
  • açúcar: por similaridade, vinhos doces harmonizam com sobremesas. Por contraste, vinhos doces podem harmonizar com alimentos salgados e muito intensos, como queijos azuis e foie gras. A doçura também ameniza amargor das comidas, de forma que vinhos doces ou semi-secos podem ser boas opções com alguns pratos amargos (como muitos queijos).

Sabores dos alimentos

Os alimentos também podem causar alteração na percepção dos componentes do vinho:

  • acidez: a acidez do alimento reduz a sensação de acidez do vinho. Por isso, alimentos de acidez destacada - por exemplo, salada temperada com vinagre ou limão, ceviche, escabeche - precisam de um vinho com acidez muito alta;
  • sal: o sal ajuda a aumentar a percepção de sabores frutados no vinho; mas alimentos muito salgados aumentam a sensação de amargor e adstringência dos vinhos.
  • amargor: alimentos amargos aumentam a sensação de adstringência e amargor em vinhos tintos. Por outro lado, o amargor pode ser amenizado por vinhos com algum açúcar residual;
  • doçura: comidas com dulçor intensificam a percepção de amargor e acidez, principalmente em vinhos secos. Ao mesmo tempo, reduzem a sensação de álcool e dulçor do vinho. Por isso, em geral, diz-se que o vinho deve ser mais doce que a sobremesa.

Componente do vinhoComponente da comida
AcidezV - sal, pimenta, gordura, acidez, corpo, suculência
X - doçura, amargor
adstringênciaV - gordura, suculência
X - frutos do mar, acidez, amargor
álcoolV - doçura, untuosidade
X - pimenta
amargorV - amargor, doçura
X - acidez
doçuraV - amargor, doçura, pimenta
X - acidez

Aromas

Os aromas representam um "ajuste fino", na harmonização. Uma vez descartados os conflitos e potencializadas as interações positivas entre os componentes gustativos, a interação entre os aromas pode trazer um benefício extra à harmonização.

A harmonização em nível de aromas pode ser dada por similaridade. Por exemplo:

  • molho de frutas vermelhas com um vinho tinto frutado;
  • cogumelos e vinhos com aromas terrosos (por exemplo, Borgonhas evoluídos);
  • um molho a base de creme, e aromas derivados da fermentação malolática;
  • especiarias e vinhos com aromas especiados;
  • prato temperado com limão, e um vinho branco de caráter cítrico;
  • uma carne defumada e vinhos com aromas vindos da madeira;
  • amêndoas e nozes e vinhos de caráter oxidativo;

Os aromas também podem se complementar:

  • chocolate e vinho com aroma de frutas vermelhas;
  • prato com muitas especiarias e pimentas, e vinhos brancos aromáticos;
  • frutos do mar e um vinho cítrico;
  • um prato sem frutas no preparo, e um vinho frutado;

A parte e o todo

Para se escolher um vinho que harmonize com um prato, é necessário levar em consideração cada parte, e o todo. É necessário pensar em como cada elemento irá interagir com o vinho: tipo de proteína, modo de cocção, temperos, molhos e guarnições. Alguns elementos terão papel preponderante, e outros, menos importantes. E nem sempre a proteína é o fator principal.

Por exemplo, um filé de peixe grelhado sem molho, temperado com sal, alho e limão, vai pedir um vinho branco leve, de preferência com alta acidez. Mas se o mesmo for servido com um molho a base de creme ou de queijo, o molho passa a ser o elemento que vai definir o vinho, pois sua intensidade de sabor e untuosidade vai pedir um vinho mais untuoso, de preferência um banco encorpado.

Outro exemplo é um filé de carne. Servido ao ponto ou mal passado, pede um vinho tinto, com bastante taninos. Caso seja bem passado, já perdeu parte da suculência, por isso, seria melhor um tinto com menos taninos. E caso seja servido com um molho de limão, com bastante acidez, aí o tinto teria contraste negativo, motivo pelo qual seria melhor pensar em um vinho branco ou espumante.

Nos próximos textos, serão apresentados com mais detalhes os efeitos que a cocção e o molho podem ter  na hora de decidir o vinho.

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