16 de junho de 2017

A aparente dualidade do ar com o vinho

Certos vinhos, quando os abrimos, usamos decanteres e aeradores para acelerar o contato com o ar, e melhorar sua qualidade; por outro lado, quando não consumimos toda a garrafa, utilizamos bombas a vácuo, ou outras ferramentas, para impedir o máximo possível o contato do vinho com o ar, para que não estrague. É normal que algumas pessoas achem uma incoerência entre as duas ações. Afinal, como pode o mesmo ar melhorar e estragar o vinho?

Para compreender essa aparente dualidade, é preciso entender os dois momentos como um só processo: o 'ciclo de vida' de um vinho. O ar faz sempre a mesma coisa, acelera a sua evolução, mas o vinho pode estar em momentos diferentes. Compreender isso também ajudará a saber identificar melhor quando será necessário fazer uma coisa, ou outra, isto é, decantá-lo ou protegê-lo do oxigênio.


O ciclo de vida

Tratar o vinho como um organismo vivo é uma metáfora tão boa, que às vezes se toma por literal. E torna muito mais fácil entender seu processo de evolução. O vinho 'nasce' da fermentação das uvas. Depois, passa por processos de maturação e envelhecimento (seja em madeira, tanques de aço ou cimento, ânforas de barro, ou mesmo em garrafa), até atingir o seu ápice (o momento ideal de consumo). E se ninguém o tomar antes, ele decai, 'morre'.

O processo completo do 'nascimento' à 'morte' pode durar de 6 meses a 2 séculos, dependendo do vinho. Os vinhos mais simples atingem seu potencial muito rápido - em dois anos, um ano, ou mesmo em poucos meses - e já são vendidos no ápice. Ou seja, após vendidos, eles não irão melhorar mais, e por isso, não devem ser guardados por muito tempo.

Por outro lado, alguns vinhos podem ser guardados por anos na vinícola, e ainda terão condições de evoluir por vários anos a mais, após vendidos. Estes são os vinhos de guarda.

Acelerando o processo

E o que faz o ar, ou mais especificamente o oxigênio? Ele acelera o ciclo de vida do vinho. Se o vinho estiver num ponto anterior ao ponto ótimo, o ar fará com que ele evolua mais rápido em direção ao topo. Ou seja, irá melhorar o vinho.

No processo de produção, o enólogo normalmente usa a micro-oxigenação para acelerar a evolução, e deixar o vinho maduro mais rapidamente. Isso pode ser obtido pela maturação em recipientes de carvalho (barris ou tonéis), que são porosos e permitem um leve contato com o oxigênio; ou pode mesmo utilizar um aparelho de micro-oxigenação, que fica liberando ar dentro do vinho, para realizar o processo de forma muito mais rápida.


Nós consumidores também podemos lançar mão deste recurso. Quando temos um vinho de guarda, pode ser que não desejamos esperar por anos, para poder apreciá-lo. Então, podemos usar o ar para acelerar o processo de evolução, deixando o vinho em um decanter (mais detalhes, no texto Aerar ou decantar: eis a questão).

Pela mesma razão, nem sempre deixar o vinho com oxigênio na garrafa será prejudicial. Se for um vinho jovem, muito duro e adstringente, pode ser que ele melhore nos próximos dias, contanto que fique guardado em local climatizado. Aliás, eu utilizo essa tática com alguma freqüência: se eu acho o vinho muito duro, eu deixo o restante na garrafa, e ele melhora nos dias seguintes.

Retardando o decaimento

Mas conforme já disse, se o vinho já atingiu seu ápice, o ar irá fazer principalmente mal para ele: irá levá-lo mais rapidamente em direção ao decaimento. O vinho fica ruim. Ele não faz mal à saúde, mas muda de cor, perde acidez e taninos, perde o sabor agradável. Obviamente, é algo que se quer evitar.

A maior parte dos vinhos disponíveis estão prontos, no ápice. Portanto, na maior parte das vezes, quando não consumimos toda a garrafa, é necessário usar algum artifício para proteger o restante. A forma mais eficiente é guardar metade do vinho em uma garrafa menor; mas depende de se tomar exatamente a metade da garrafa, e ter disponível em casa uma meia-garrafa para o restante.

Pior é quando, ao abrir o vinho, descobrimos que ele já passou do ponto. Pode ser que ainda mostre qualidades interessantes, mas já demonstra sinais claros de que que está 'com um pé na cova'. Alguns casos estão tão avançados, que o mero contato com o ar na taça pode ser suficiente para terminar de aniquilar o restante de vida que lhe restava.

Quanto tempo depois de aberto?

Uma pergunta que sempre aflige o consumidor é, quanto tempo podemos manter o vinho, depois de aberto? Existem diversas tabelas, com sugestões de tempo dependendo do tipo de vinho. Algumas são muito simplistas, ou cometem erros crassos; mas a maioria sugere um intervalo razoavelmente seguro para vinhos básicos. Porém, elas são baseadas em suposições de que o vinho já está em seu ápice, e ainda não levam em consideração quanto resta de vinho. E garanto: faz uma enorme diferença guardar 3/4 de garrafa, ou guardar 1/4. Quanto maior a proporção de ar, pior para o vinho.

E portanto, em vez de ficar tentando seguir tabelas, a minha sugestão é: prove e veja se o vinho ainda está do seu gosto. Se não estiver bom, ele não fará mal à saúde, apenas será desagradável. Observe apenas que, caso o vinho seja conservado na geladeira, é preciso que volte à temperatura correta, para fazer esse teste (ele pode estar desagradável porque oxidou, ou porque está frio demais).

4 comentários:

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