8 de dezembro de 2021

A linhagem das Noiriens

Além de uma das principais variedades do mundo, e queridinha da maioria dos connoisseurs de vinho, a Pinot Noir é também uma das variedades mais antigas, dentre as que continuam em produção. Seu primeiro registro data de 1283, sob o nome Moreillon, mas há teoria aceita de que possa ter pelo menos 2000 anos. E todo esse tempo trouxe duas conseqüências:
  • ela possui uma grande variabilidade clonal. Alguns clones são tão distintos, que são tomados por variedades diferentes, como o caso de Pinot Blanc, Pinot Gris, Pinot Meunier e Pinot Precoce.
  • ela gerou uma infinidade de outras variedades pelo cruzamento natural, ao longo dos séculos, como é o caso da Chardonnay e da Gamay.

A Pinot Noir, junto aos seus clones e descendentes, são classificados na ampelografia (o estudo das variedades de uva) como a família das Noiriens, sendo este um sinônimo, em desuso, da Pinot Noir.

A Pinot

Na ampelografia, as Pinots Noir, Blanc, Gris, Meunier e Précoce são apenas variações clonais de uma mesma variedade. Isso porque, pela definição científica, apenas o cruzamento entre duas variedades resulta em uma nova variedade. E testes de DNA identificaram que este não é o caso das Pinots.

Sua provável origem é a Borgonha, que também é sua região de referência. Dali, a Pinot, em suas diferentes formas, se difundiu, e se tornou variedade de destaque em todas as regiões o nordeste da França (Borgonha, Champagne, Alsácia, Jura, Centre-Loire), além de Alemanha, Suíça, Áustria, e nordeste italiano (em especial, no Südtirol / Alto Adige, a zona de cultura austríaca). A seguir, suas principais variações clonais:

  • Pinot Noir: variedade muito conceituada, mas de difícil cultivo, sensível e suscetível a diversas doenças. Se dá melhor em regiões frescas, em que a insolação não seja demasiadamente intensa (evita queimaduras aos frutos), e que não seja excessivamente úmida (pelo risco de doenças fúngicas), e com pouco risco de geadas tardias (que podem prejudicar a floração). Tem pele fina, por isso produz vinhos com pouca cor e taninos, delicados e elegantes. Se destaca na Borgonha, e ainda é a variedade tinta mais importante da Alemanha e Alsácia (única, neste caso). Também é uma variedade muito conceituada para espumantes de qualidade, sendo um dos tripés do Champagne.
  • Pinot Gris: as mutações de casca rosada têm perfis muitos distintos. Na Alsácia, é uma das variedades nobres, considerada aromática, e responsável por vinhos doces conceituados. No nordeste da Itália (Trevenezie), é conhecida como Pinot Grigio, e usada para vinhos secos, leves e frescos, por vezes, de cor rosada pálida (ramato). Já na Alemanha, é frequentemente feita em estilo halbtrocken, principalmente se nomeada como Rülander.
  • Pinot Blanc: a mutação branca, até o século XIX, era confundida com a Chardonnay. No entanto, atualmente, tem uma reputação inferior à Pinot Gris. Banida da Borgonha, e considerada uma variedade auxiliar na Alsácia, é mais usada em blends e Crémants. Também é largamente cultivada no nordeste italiano, na Alemanha, onde, apesar de menor popularidade que a Pinot Gris, costuma resultar em vinhos mais conceituados do que na Alsácia.
  • Pinot Précoce: um clone tinto que amadurece mais cedo que a Pinot Noir, o que vem a calhar na Alemanha, onde é conhecida como Frühburgunder. É encontrada principalmente em Ahr, uma das regiões vinícolas mais setentrionais da Alemanha, é conhecida pelos seus tintos a base de Pinot Noir e Pinot Précoce.
  • Pinot Meunier: outro clone tinto, tem ciclo de maturação mais curto que a Pinot Noir, por isso, mais adaptada a locais mais frios e com risco de geadas. É mais famosa como uma das 3 variedades de Champagne (ao lado de Pinot Noir e Chardonnay), mas também é usada para vinhos tintos, em particular na Alemanha.

Árvore genealógica da Pinot.
Caixas com fundo azul identificam as variedades oficialmente classificadas como Noiriens.
Em fundo laranja, as variedades cultivadas atualmente na Borgonha.

Descendentes

Desde a Idade Média, a Pinot (em seus distintos clones) foi muito cultivada pelo norte e nordeste da França. O mesmo ocorreu com uma outra variedade, chamada Gouais Blanc. Como resultado, diferentes cruzamentos entre as duas resultaram em pelo menos 21 novas variedades, com características muito distintas entre si. Elas foram cultivadas em séculos passados, em diferentes regiões do norte francês. Muitas caíram em desuso (assim como a Gouais), mas algumas ainda são largamente cultivadas.

A lista a seguir apresenta as principais descendentes cultivadas comercialmente. Delas, 7 são resultado de cruzamentos com a Gouais, e apenas as duas últimas são exceções.

  • Chardonnay: Variedade branca mais difundida do mundo, adapta-se bem a climas frios e quentes. É uma variedade não aromática, expressando diferentes perfis de acordo com o terroir. Em climas frios, gera vinhos cítricos e leves, enquanto em climas mais quentes, resulta em vinhos opulentos, com frutas tropicais (em especial, abacaxi). Também é muito versátil na adega, tendo afinidade com conversão malolática, além de fermentação e/ou estágio em madeira. Reina na Borgonha e em Champagne, tem forte presença no Loire e no Jura, mas seu uso na Alsácia se limita aos crémants.
  • Aligoté: conhecida como "a outra branca" da Borgonha, vive à sombra da Chardonnay. É uma variedade de alta acidez, normalmente usada para produzir vinhos simples. Pode ser encontrada na apelação regional Bourgogne Aligoté, na denominação village Bouzeron, ou ainda na composição de muitos crémants.
  • Gamay Noir: provavelmente originária da sub-região do Mâconnais, no sul da Borgonha, onde é a tinta preferida. Mas seu ápice está ainda mais ao sul, no Beaujolais, onde representa 98% dos vinhedos. Gera vinhos de cor pálida e taninos leves, como a Pinot Noir, porém, com menor complexidade e capacidade de envelhecimento. É também uma variedade importante na parte francesa da Suíça.
  • Melon: apesar de originária da Borgonha, foi banida da região, e encontrou um lar na sub-região do Pays Nantais, no baixo Loire. Produz vinhos leves e simples sob a alcunha Muscadet; e muitas vezes, com o uso de sur lies, para dar um pouco mais de corpo.
  • Sacy: variedade branca, que recebe o nome de uma localidade na sub-região de Auxerrois, na Borgonha. Também banida da Borgonha, praticamente só é encontrada na AOP Saint-Pourçain, no alto Loire, onde é uma auxiliar ao lado do Chardonnay.
  • Auxerrois: variedade branca, de baixo teor alcoólico. Apesar do nome idêntico à sub-região borgonhesa, não é cultivada ali. É a segunda mais cultivada da Alsácia, apesar de não ser considerada uma variedade nobre, e por isso, normalmente ser usada em blends, ou crémants. Também é importante na desconhecida região de Lorena (Lorraine), a oeste da Alsácia.
  • Romorantin: variedade branca, difícil de amadurecer, hoje é exclusiva da AOP Cour-Cheverny, no Loire. Gera vinhos secos ou moelleux, com alta acidez.
  • César: uma exceção nessa lista, não é resultado de cruzamento com a Gouais, e sim de uma variedade chamada Argant. A César é uma variedade tinta e tânica, e atualmente só permitida no departamento de Yonne (Borgonha), com destaque para a AOP Irancy, onde ela pode ser usada em corte com a Pinot Noir (ao máximo de 10%, apenas). O nome provém da lenda de que teria sido trazida pelos romanos, mas essa teoria foi por terra com a descoberta de seu parentesco.
  • Müller-Thurgau: um cruzamento em laboratório produzido pelo pesquisador Hermann Müller (nascido em Thurgau, Suíça, daí o seu nome) entre a Riesling e uma variedade chamada Madeleine Royale. Esta, que atualmente não é mais cultivada comercialmente, é resultado de um cruzamento natural entre a Pinot - o que faz dela neta da Pinot - e uma variedade chamada Trollinger, provavelmente originária do Südtirol, e que também é muito cultivada na região alemã de Württenberg. Além de segunda variedade mais cultivada da Alemanha, ela é muito cultivada na Áustria e Suíça.

As Noiriens pelo mundo

A Pinot Noir e a Chardonnay são dois casos de sucesso avassalador no mundo do vinho, seja para vinhos tranquilos, seja para espumantes de qualidade (em especial, pelo método tradicional). A Pinot Noir, muito difícil de cultivar, tem obtido mais sucesso nas regiões vinícolas mais frias, em especial Central Otago (Nova Zelândia); Oregon, Los Carneros e Russian River (Estados Unidos); Mornington Peninsula, Yarra Valley e Tasmânia (Austrália), Patagônia (Argentina) e Valle de San Antonio (Chile).

A Chardonnay, por sua vez, não tem a mesma dificuldade. E se na França, o sucesso veio de climas mais frios, no Novo Mundo foi cultivada com igual sucesso em regiões de clima mais quente, sendo a primeira ou segunda variedade (vinífera) branca mais cultivada em Estados Unidos, Austrália, Chile, África do Sul, Argentina e Brasil. Com esse sucesso, até mesmo a França passou a explorar sua aptidão para climas mais quentes, no Languedoc.

A Pinot Gris também não fica muito atrás. O sucesso comercial dos Pinot Grigios delle Venezie levou a um substancial cultivo no novo mundo, em especial Califórnia e Oregon (a branca mais cultivada, neste estado), nos Estados Unidos, assim como Austrália e Nova Zelândia. A Pinot Blanc costuma ser plantada onde está a Gris, porém com menor área dedicada, exceto na a Áustria, onde é usada principalmente para vinhos doces em Burgenland. A Müller-Thurgau, além dos países de língua alemã, é muito importante na Hungria e República Tcheca, e tem presença pequena em outros países.

O restante da família já não gosa da mesma popularidade. A Aligoté tem grande importância no leste europeu, em especial Ucrânia, Moldávia e Romênia. A Pinot Meunier é importante na Inglaterra, na inspiração que o país busca em Champagne. A Pinot Précoce também tem tímida presença na Inglaterra. Para não dizer que não há nada fora da Europa, Melon e Aligoté estão plantadas nos Estados Unidos. E no Chile, há algumas poucas vinhas velhas de César, localmente mais conhecida como Romano.

Epílogo

Os testes de DNA permitiram determinar que os 5 tipos de Pinot, normalmente tratados pelos viticultores como variedades diferentes, são apenas mutações de uma mesma variedade. Além disso, permitiram identificar grau de parentesco entre a Pinot e dezenas de variedades. Nas mencionadas neste texto, o pai e a mãe foram identificados, de forma que é possível saber com certeza que todas são descendentes da Pinot, e não vice-versa. 

Por outro lado, outros estudos genéticos identificaram relações de parentesco da Pinot com muitas outras variedades. Nestes casos, não é possível estabelecer quem é o pai, e quem é o filho. Mas na hipótese de a Pinot ser pai, ela seria então antecessora de diversas outras importantes variedades francesas, como Sauvignon Blanc (e por conseqüência, Cabernet Sauvignon), Sémillon, e até mesmo a Syrah. Mas isso é um tema para outro texto...


2 comentários:

  1. Regina Coeli Rodrigues24 novembro, 2022

    Estou encantada com sua página. Quanto conhecimento! Obrigada!!!

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