As regras do vinho

Vamos desburocratizar o vinho!


Imagem de Pedro Simões, disponível no Flickr

O vinho traz consigo costumes e práticas - alguns com certo objetivo, outros apenas por glamour - que foram elevados à categoria de regras, quase como leis, em que as pessoas perguntam: "mas pode isso? pode aquilo?". E o pior é que tem uns enochatos que às vezes respondem que "não pode", "essa harmonização é errada", "não é assim que se pega na taça", "o vinho está na temperatura errada", "não pode fazer coquetel com vinho". Aparecem textos em revistas e blogs, condenando certas práticas como gafes ou erros, e essas 'regras' acabam ganhando ares de pedantismo, afastando novos potenciais consumidores, principalmente em um país sem tradição no consumo de vinhos, como o nosso. Por este motivo, escrevi este texto - em duas partes - para desmistificar algumas delas.
Lembre-se: nem todo momento é correto
para se aplicar certas formalidades
Atenção: eu não pretendo dizer que a taça é sempre supérflua, que a temperatura não importa, ou que vamos usar vinho de R$100 pra fazer sangria. Estou dizendo que existem momentos e vinhos que merecem um pouco mais de cuidado, mas que nem todo momento é correto para se aplicar certas formalidades.

Antipasti e vinho do vizinho, em uma tradicional casa de família italiana

Vinho no copo

"Que sacrilégio! Servir vinho em copo!" A foto acima foi tirada em uma casa italiana, que nos hospedou. Família tradicional, com nono, nona, todos os filhos, a nora e a netinha. Almoçam juntos todos os dias, e bebem vinho, todos os dias (exceto a netinha, por enquanto). Sem pompas, nos serviram o vinho produzido pelo vizinho. E para cada pessoa, havia um copo para água, e um copo igualzinho para o vinho. Ou seja, um vinho simples, que eles tomam todo dia, para acompanhar uma refeição, não precisa de taça.

Mais um exemplo: se você visitar um mercado qualquer na Espanha, e pedir uma dose de vinho, vão te servir em um copinho largo e baixo, que eles chamam de chato. Todo espanhol vai ao mercado, e bebe vinho assim. Se quem tem tradição com vinho pode, porque para nós é gafe?

Um copo 'chato' de vinho, em Madri
Se quem tem tradição pode,
porque para nós é gafe?

A taça errada

"A taça de vinho tem que ser lisa, transparente, com bojo amplo, e com a boca ligeiramente mais fechada." Se você for fazer uma degustação formal de vinho, sim, o ideal é que seja assim. Mas se você chamou a família toda pra bacalhoada da Semana Santa, e tem um lindo jogo de taças de vidro colorido, com a boca toda aberta, cheia de detalhes esculpidos, fique à vontade! Se a família italiana pôde me servir no copo, por que você não pode servir sua família na sua taça vermelha? Eu, particularmente, não gosto de copos com vidro colorido, mas se me convidar à sua casa e me servir nesta taça, beberei o vinho, com prazer. E se algum convidado estivesse pensando em fazer uma análise formal do vinho durante a bacalhoada, o errado é ele!

Tem gente que também se preocupa com qual é a taça correta para cada tipo de vinho: "Esta é de tinto, ou de branco?". Se você tem taças de tamanhos e formatos diferentes, pode se dar ao luxo de escolher qual deve ser a mais adequada para cada um, mas se só tem um tipo, ela será a taça correta!


Encher demais a taça

Nas diversas listinhas sobre os "erros mais comuns", um que sempre figura é o de encher demais a taça. A 'regra' diz que deve-se encher até 1/3 ou 1/4 da taça, para podermos girar o vinho, ver as lágrimas e o halo aquoso, e para podermos sentir plenamente seus aromas.
Tem gente com tique, girando a taça de
Reservado chileno a tarde inteira
Bom, tenhamos bom senso. Encher a taça até a borda não é tão legal: pode acabar induzindo a beber mais do que deveria; ou ainda deixar esquentar um vinho que deveria ou poderia ser bebido mais fresco. Mas também não chega a ser nenhum pecado. Afinal, nem todo momento é hora de ficar analisando as lágrimas do vinho, e nem todo vinho tem nada a oferecer que justifique ficar girando a taça. Tem gente que acaba ficando com tique, e fica girando a taça de Reservado chileno a tarde inteira no churrasco. Isso sim, é gafe!

Foto de domínio público: http://publicphoto.org

Segurar a taça pelo bojo

Nossa, como os enochatos se contorcem com essa! Para eles, deve-se sempre segurar a taça pela haste. Pôr a mão no bojo seria uma tremenda gafe. A 'razão' por traz disso é que o calor da mão esquentaria a bebida. Sinceramente, o vinho vai esquentar mais rápido pela ação do próprio ambiente, do que por causa da mão. Principalmente, se você estiver jantando, e a taça ficar mais tempo à mesa que na mão. E se estiver quente, invariavelmente o vinho vai esquentar antes de terminarmos de tomar a taça, independente de se segurar pela haste, pela base, ou tomar de canudinho. Então, não queira 'ensinar' como se deve pegar na taça, porque não faz a menor diferença! Inclusive, se fizesse alguma diferença, chope seria servido em taça.

Continue desmistificando mais algumas regras do vinho. Clique aqui para ler a segunda parte: As regras do vinho - parte 2.

13 comentários:

  1. Muito bom Rodrigo, desmistificou muito tabu existente e muito mimimi, eu já suspeitava de muita coisa a respeito.
    Muito bom.

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    1. Obrigado, Luã. Agora já sabe: quando encontrar um amigo querendo aplicar todas as pompas sem saber direito por quê, é só mostrar este texto!

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  2. KKkkkkk... assim, o farei.
    Grande abraço!

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  3. Sensacional Rodrigo, obrigado pela sua sensatez e simplicidade. Nestes pequenos depoimentos aprendi um pouco mais sobre as características do vinho, com detalhamentos que descomplicam alguns "mitos" que são muitas vezes enaltecidos demasiadamente. Um grande abraço.

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    1. Eu que agradeço, Fernando! Fico muito feliz que tenha captado a mensagem.

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    2. Excelentes informações!

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  4. Obrigado pelas dicas

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  5. Amei demais! Tenho asco dessa gente metida a besta cheia de fru fru e pensa que sabe ou quer ditar regras que não cabem no momento. Cada um toma como quiser, dependendo da cultura que vive e das práticas sociais que está acostumado.

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